Limitado a 100 palavras por dia... "Vox" na vida real

17/02/2019


Olá a todos!! :)

Na verdade, o smile sorridente da nossa saudação habitual deveria ser excluída, hoje, a título excecional... As mais recentes estatísticas portuguesas sobre o número de mulheres assassinadas desde o início de 2019 deixam-me verdadeiramente alarmado enquanto cidadão deste país que muitos apelidariam de pacato.


Parece mesmo que assistimos a um lamentável retrocesso de pensamento, rumo a um tempo em que as mulheres são insensivelmente ignoradas. E assim a sociedade recua num mundo que se afirma em progresso. Tal e qual acontece em Vox, de Christina Dalcher, publicado em Portugal pela Topsleller (2020). Tal como num cenário cinzento que devemos a todo o custo afastar.

(- E, com este ponto final, a nossa publicação teria conhecido um fim forçado. Atingiu-se o limite legal de 100 palavras, as mesmas que todas as mulheres estão impedidas de ultrapassar nesta distopia, condenadas ao silêncio para não sentirem o impiedoso choque elétrico que lhes percorrerá o corpo a cada palavra ilicitamente pronunciada.)

E foi movido por essa mágoa que aceitei o desafio de me cingir a 100 míseras palavras num dia normal. Um dia inteiro na pele de uma mulher deste mundo distópico: sem que as minhas palavras valessem de nada para os outros. Mas cada uma significando um mundo inteiro para mim...

Vejam como correu!




   - Bom dia! - digo, assim que me levanto. Mas, hoje, a frase não puxa um sorriso. Em vez disso, um pensamento alarmista e quase culpado invade-me o corpo num calor doentio: tinha acabado de desperdiçar duas palavras. 2% da minha quota diária no primeiro minuto do dia...

   A minha rotina matinal desenrola-se no mais absoluto silêncio. Sem sussurros orientadores para mim próprio, sem qualquer cantarolar baixinho. Nada a não ser a minha respiração controlada.

   Foi no autocarro que percebi a necessidade urgente de me limitar ao absolutamente essencial. Após tropeçar no pé de uma senhora baixa de cabelos brancos e posição instável junto do poste de apoio, desfaço-me logo num atrapalhado pedido de desculpas...

   - Desculpe! Peço desculpa, eu não...

   E, logo ali, depois de esbugalhar os olhos de incredulidade, conto o número de palavras que acabei de gastar: mais cinco para a conta. Engulo em seco e sou forçado a deixar a frase no ar enquanto os olhares dos restantes passageiros pesam sobre mim com uma estranheza humilhadora. As minhas faces não perderam o rubor de vergonha e insatisfação até sentirem o alívio do ar fresco da manhã, nas proximidades da faculdade.

   Ao chegar, cumprimento os meus amigos com simples acenos de cabeça. Um deles, achando-me estranhamente cabisbaixo (quem não o estaria numa situação como aquela?), acaba por vir ter comigo pouco antes de a aula começar para saber como estou.

   - Tudo bem. - garanto, com o coração a bater de ansiedade. - Depois explico.

   Porém, a manhã conserva a leve esperança de concretização da minha meta. Os professores falam como se não estivesse ninguém na sala e o ambiente parece particularmente calmo, o que significa que não preciso de abrir a boca. Durante esse tempo, apenas me escapa uma palavra em resposta a uma piada murmurada ao meu ouvido sobre uma frase mal pensada de um professor de uma disciplina social. Estava a conseguir aguentar-me.

   Bem, pelo menos, até uma professora particularmente entusiasta nos pedir para debatermos um tópico em grupos. O tema não era nada interessante, qualquer coisa sobre a influência de algumas potências na economia nacional; mas, como de costume, tenho sempre algo a dizer. Dei por mim a conter-me para poder reduzir mentalmente os meus argumentos a palavras-chave. A questão é que, assim que terminava esta fria desconstrução lexical, o grupo avançava para um tópico diferente e a minha intervenção caía desilusivamente por terra. Uma e outra vez. Cerro os punhos com a frustração.

   Mesmo assim, à hora de almoço, as palavras estão quase no fim. Reúno as anotações de todas as palavras gastas em pequenas frases ao longo do dia. Tudo somado, são 71 palavras. 71!

   Encaminho-me para a cantina, sob a desconfortável luz do sol. Eu e um grupo de amigos e amigas combinámos um almoço de convívio antes de voltarmos para casa. No entanto, algo me faz interromper a caminhada a meio. O número de palavras utilizadas numa simples manhã silenciosa repete-se na minha cabeça como um travão. Quieto e com o nervosismo a tomar conta de mim, decido ignorar o planeado e regressar imediatamente a casa. O contacto com os outros assemelha-se-me inevitavelmente a uma prisão: querer e não poder dizer nada, participar nas conversas, nas risadas que não sabia se poderiam contar também como palavras... Tudo me deixava ainda mais deprimido.

   Arrasto os pés até ao autocarro para me sentar num lugar ao fundo, escondido de todos. Sinto-me doente, perturbado. Como se o meu cérebro se desfizesse numa massa enevoada e insuportável de lidar. Sinto-me menos do que uma sombra, sem palavras nem presença.

   Quase a chegar a casa, sobressalto-me com uma súbita vibração partir-me da mão. Penso imediatamente no choque elétrico das 100 palavras; interrogo-me se não estive a pensar alto e está agora a ser descarregada a minha excruciante punição. Mas não se trata disso... É simplesmente o meu telemóvel, ainda em silêncio por causa das aulas. A vibrar com uma chamada que não vou a tempo de atender.

   Olho em volta, receando ter dado nas vistas. O suor seca na minha pele subitamente fria. E começo a sofrer de sintomas físicos da ansiedade... As mãos tremem, a boca seca, o coração parece desconfortavelmente irregular.

   Procuro distrair-me, olhando para o telemóvel, o qual volta a receber uma chamada. É um dos meus amigos, provavelmente à minha espera para iniciarem a refeição. Penso em atender, mas sei que não tenho nem palavras nem disposição para isso. "Desculpem. Hoje, não posso.", teclo. Depois, com um suspiro fraco, carrego em enviar.

Acabo por desligar o telemóvel, indisponível para mais contactos por hoje.

   Entro em casa, pouso a mochila à entrada e sento-me no sofá, sem fome. Tento ler qualquer coisa, mas não sou capaz de me concentrar por causo do nervosismo. Nem penso em ligar a televisão: a simples sugestão de ruído deixa-me ainda mais angustiado.

   Acabo por desistir deste dia frustrantemente redutor. Fecho a porta e a janela do meu quarto e acabo deitado na cama sem sequer despir a roupa. No auge da agonia, sinto vontade de gritar, espernear, mover-me com violência enquanto solto as palavras que ficam presas na minha garganta. Mas, novamente, o limite de palavras me vem à memória, impedindo-me de o fazer. Privando-me mais profundamente da minha liberdade. De manter os resquícios de alguma possível sanidade mental.

   Adormeço a roer as unhas como se a minha vida dependesse disso. Mas, até esse único escape à minha fúria contida me valer, interrogo-me como é que será possível viver assim todos os dias. Como é que tantas mulheres no mundo inteiro aguentam dia após dia, hora após hora, numa vida em que não têm voz. Não compreendo como suportam saberem que, ao contrário de mim, o amanhã será exatamente igual, (um estranho sabor seco azeda-me a boca) como aguentam sentirem-se a todo o momento tal como eu no interior indistinto deste quarto escuro...

   Uma nulidade.


(Se leram esta publicação em voz alta, gastaram as palavras de 12 dias de uma mulher de "Vox")


(AVISO: Assim como o restante conteúdo do blog, este conto está protegido com direitos de autor)


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