No (des)conforto das histórias... #1

22/04/2018


Olá a todos!! :)

Bem, como já esperavam, este mês temos uma novidade nas publicações do blog... Trata-se de mais uma rubrica (que tentarei ser mensal) e que terá um especial carinho da minha parte (espero sinceramente que também da vossa!!).

O que não é novidade para ninguém é o meu amor pela escrita (caso contrário não teria um blog literário...), amor esse que me leva a contar pequenas histórias (algumas maiores...) de vez em quando. A verdade é que senti necessidade de partilhar algumas das personagens que aparecem subitamente na minha mente com uma profunda necessidade de contarem a sua história. E é isso que me limito a fazer...


Hoje, termino o meu post por aqui, deixando-vos com o primeiro conto... Espero que gostem!! (A vossa opinião - nos comentários ou por mensagem - é muito importante para mim!)

Boas leituras!! ;)


   "Eles são assim...". A frase, vinda de uma memória longínqua, chega-me ao pensamento envolta num certo azedume. Tento pô-la para trás das costas, amarfanhá-la junto com as outras frases parecidas que ouvi e que nunca consegui esquecer, amontoando-se nas traseiras da minha mente, prontas a saltar para a frente a qualquer momento. Desta vez, não, prometo a mim mesma, ainda que um pouco insegura.

   Entro para o restaurante de fast-food onde trabalho há mais de dois anos, desde que saí de casa da minha mãe e do seu companheiro (o mesmo que vive com ela desde os meus dez anos). O cheiro a fritos invade-me as narinas mal atravesso o balcão para a área dos funcionários, em direção ao pequeno balneário onde vestimos a habitual farda acastanhada.

   - Linda saia! - elogia Sam, com um sorriso cúmplice nos lábios. Tem uns três anos a mais do que eu, mas a sua baixa estatura e a espontaneidade quase infantil nunca fez Samantha passar por maior de vinte.

   - Obrigada - sorrio de volta. - Está tudo bem? - pergunto, enquanto dispo a camisola de gola alta e a saia comprida, não obstante o calor que se faz sentir cá dentro.

   - Problemas com o James, como sempre. - encolhe os ombros. - Mais do mesmo. Sabes como são os homens...

   Sam já saiu para o trabalho, de uniforme vestido, quando me arrepio por ouvir a sua última frase. Assim que acabo de me vestir, deito um breve olhar para a velha boneca russa que conservo no meu cacifo, a mesma que usava em criança quando queria sentir-me protegida, mesmo naqueles momentos em que já sabia que ela não podia fazer nada por mim. Um estranho sorriso atravessa-me os lábios ao pensar na ingenuidade parva dessa crença. De qualquer das formas, continuo a tê-la sempre comigo.

   A manhã de trabalho passa rapidamente, como de costume. Depois dos pequenos-almoços, o movimento é quase inexistente, pelo que apenas tenho de tratar dos preparativos para a enchente dos almoços, ao mesmo tempo que vou trocando dois dedos de conversa com Sam, que é sempre fonte de umas boas (mas sempre discretas) gargalhadas.

   É por isso que, quando Mark, o gerente da loja, sai do seu pequeno gabinete e olha para nós, temos de nos controlar. O seu aspeto de quarentão barrigudo e forte (bem como o mau feitio que facilmente coloca os nossos tão valiosos empregos em risco) faz-nos parar, de repente, fingindo estarmos a trabalhar em absoluto silêncio. No entanto, a sua expressão não está tão cerrada como esperávamos. Pelo contrário, um sorriso matreiro abre-se no momento em que olhamos para ele.

   - Theresa? - assinto levemente, ao som do meu nome. - Podes vir ao meu gabinete, por favor? São só uns momentos. - Limito-me a aceder ao seu pedido com a cabeça, com a boca a secar. Uns passos depois, ouço-o falar para Sam, atrás de mim. - Podes fazer a tua pausa mais cedo, se quiseres. Não vos quero a fazer pausas juntas para atrasarem o trabalho...

   O impaciente bufar de Sam ao sair é a última coisa que me chega aos ouvidos antes de entrar realmente para o escritório do gerente. Aproximo-me da pequena secretária de madeira e fico de frente para ela, a ver os papéis espalhados e a imunda máquina de café, enquanto espero para me sentar e ouvir o que ele tem a dizer.

   O meu coração dispara assim que o trinco da porta se fecha atrás de mim.

   - Ora, ora, ora... - começa, como se a situação o divertisse. Começa a caminhar na minha direção. - Ouvi dizer que a menina Theresa se tem portado mal... É verdade?

   Assim que me alcança, mantém-se atrás de mim, sussurrando-me ao ouvido. Reteso-me de imediato.

   - Nestas circunstâncias... - continua, o seu hálito a aros de cebola e café enjoa-me como nunca antes. - A única opção que tenho é castigá-la...

   Salto assim que me toca numa nádega.

   - Não é preciso ficares assim tão nervosa... São só regras... E as regras têm de ser cumpridas, não é?

   Engulo em seco, virando-me subitamente para ele. Todavia, não sou capaz de reagir. A sua barba roça na minha cara no momento antes de forçar um beijo. Afasto a cabeça, mas ele apenas aproveita para me deitar, caindo em cima de mim com um desejo repugnante. Os esforços de me afastar são inúteis, a sua força e peso impedem cada movimento meu. Preciso de chorar, mas nem as lágrimas estão do meu lado, não saindo nem quando a sua língua dura molha uma das minhas faces. Em vez delas, são as memórias que me assaltam, inutilizando de vez os meus músculos. Durante segundos, a respiração de Mark deixa de me arder no pescoço, sendo trocada pela do meu padrasto, no tempo em que agarrava com força a boneca russa como se isso me libertasse do aperto, do medo que sentia de cada vez que ele entrava no meu quarto, no silêncio da noite.

   Mark arranca os botões de cima da camisa selvaticamente, procurando com sofreguidão o espaço entre as minhas mamas. Torno a vivenciar o mesmo. A sensação de invasão, de impotência. De vulnerabilidade.

   - Anda lá, cabra... Tu costumas gostar.

   A frase atinge-me como uma estalada, chamando o rol de frases que ouvi nestes impossíveis momentos de suplício. "Eles são assim... Não há nada a fazer", disse a minha mãe, certa manhã, quando eu ainda pensava que ela não desconfiava de nada. "Os homens precisam do nosso carinho". Ainda hoje não percebo como foi capaz de mo dizer, de deixar a própria filha ser violada vezes sem conta no quarto ao lado pelo homem que voltava para a sua cama minutos depois. A raiva que me fez sair de sua casa embola-me a garganta a um ponto insuportável.

   Desta vez, não.

   A fúria que andou adormecida desde que tudo começou, há uns merdosos nove anos, desperta finalmente, fazendo-me reagir pela primeira vez desde esse momento.

   Desta vez, não!

   Mal Mark se chega para trás para tirar o cinto e baixar as calças, pego na chave que atirou para o chão e corro para abrir a porta. A adrenalina percorre-me ao tentar sair, até Mark me prender pela cintura, puxando-me de novo para o interior do escritório. Recusando-me a deixar que tudo volte a acontecer, esbracejo até me conseguir soltar, correndo pela cozinha vazia até ao balneário. Fecho a porta, impedindo que Mark, agora no meu encalço, me consiga alcançar. Ainda em corrida, tranco-me no interior. Afasto-me para o canto oposto da divisão.

   - Cabra! - grita, frustrado e completamente perdido de raiva. - Sua cabra! Vadia, é o que tu és!

   Sob o som insistente das suas tentativas de abertura da porta, rodando rapidamente a maçaneta, apoio-me no lavatório ao lado dos cacifos. Olhando para o meu estado lastimável refletido no espelho, desabo depois de todos estes anos. As lágrimas caem finalmente para o rosto, para os braços, para o chão. Os soluços fazem-me perder força e cair, sentada, deitada no chão, perdida de dor, de raiva contra o mundo. Contra a minha mãe, que deixou que tudo começasse. Contra o meu padrasto, que violou a minha infância. Contra as roupas longas que continuo a usar, com medo de que algum homem olhe para mim. Contra Mark. Até contra Sam, que admite que os homens são os homens, a darem problemas às mulheres, sem saber os efeitos que essas frases têm em mim, sem fazer ideia de que são essas as pequenas consequências que se vão acumulando até que um homem se ache no direito de abusar de uma mulher.

   Choro. Choro até não poder mais, até expulsar esta substância pestilenta que teima em manter-se para sempre dentro de mim.

   A porta do meu cacifo abre-se, a fechadura finalmente cedeu ao tempo.

   Agora, a velha boneca russa olha-me nos olhos. E esse olhar faz-me perceber tudo o que nunca fui capaz de entender até hoje. Ela nunca me ajudou, porque não podia. Ela nunca me ajudou, porque tinha de ser eu a fazê-lo... Só eu tinha a força de o parar.

   Só as pessoas têm força de o parar.


(AVISO: Assim como o restante conteúdo do blog, este conto está protegido com direitos de autor)


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