No (des)conforto das histórias... #2

18/10/2018


Olá a todos!! :)

Pois é... Finalmente, tenho oportunidade de vos trazer um novo conto, fruto da necessidade de extravasar para o campo das palavras uma realidade vivida por tantas crianças por este mundo fora...

Estou a falar-vos das crianças-soldado, feitas refém do ambiente de guerrilha vivido em conflitos internos e mesmo interpaíses, em territórios menos desenvolvidos. Na verdade, a ONU estima que são 300 000, distribuídas por 86 países, onde a fome e a pobreza podem levar os pais a oferecer os filhos para o serviço militar.


"Algumas são alistadas, outras são arrebanhadas ou raptadas e, outras ainda, são forçadas a unir-se a grupos armados para defenderem as suas famílias." (excerto de Relatório de Graça Machel, no seguimento da Resolução 48/157 da Assembleia Geral das Nações Unidas).

Apenas vos peço que imaginem os efeitos devastadores que estas vivências podem desencadear na mente de uma criança... Tendo sempre em conta que, "em certos casos, houve jovens que foram deliberadamente expostos a cenas horrorosas", em experiências que "fazem com que as crianças possam cometer, elas próprias, atos de violência e contribuir para um corte com a sociedade."

Por isso, pensem apenas na vida destruída de uma destas crianças... Apenas uma. E tenho a certeza que não ficarão indiferentes a esta questão...

(Boas leituras!! ;) )...



   Pouso a arma.

   Pouso a arma e penso.

   Por um momento, depois de ouvir o tiro que quase atingiu o meu amigo Samael, preciso de reprimir a dor da perda que por pouco não me esmagou novamente. Uns centímetros mais à esquerda e aconteceria outra vez. Mais uma terrível vez. Depois de todos os que já perdi em batalha. A família, o grupo... eu próprio...

   Olhando para uma ponta levantada no metal da minha HK MP7, abstraio-me da sua existência por umas frações de segundo. O pensamento começa a escapar ao meu controlo...

   Ainda com o Samael na metade alerta da minha mente, penso no quanto ele queria ter nascido noutro lugar. Desde que tivemos aquele infiltrado americano connosco, ele não conseguiu deixar de desejar ter vindo ao mundo na pátria dos soldados que combatemos diariamente. Foi numa quente noite equatorial que, com os seus olhos humanos sob o aspeto rijo, o velho soldado americano nos revelou o modo como as crianças da nossa idade cresciam na sua terra, livres de problemas. Com uma família. Nunca consegui perceber muito bem como será ter uma família de verdade, mas calculo que seja como o Samael é para mim: uma pessoa mais próxima do que qualquer outra, o nosso porto seguro.

   Mas a verdade é que nunca mais me preocupei com isso depois de o velho ter sido assassinado por um dos nossos que não sabia que ele era um aliado. Nunca mais... até agora.

   No fundo mais secreto da minha mente, pergunto-me: e se...?

   Mas não. Nunca seríamos capazes de viver como essas crianças depois de tudo o que vimos, depois de tudo o que presenciámos. De tudo o que fizemos.

   E se... em vez de ingerir uma refeição macilenta por dia, tivesse acesso a alimentos para mastigar e saborear? Se, em vez de farrapos, vestisse roupas limpas e cheirosas? E se, em vez de correr pela vida, corresse por diversão?

   Diversão... a palavra parece-me tão complicada de sentir como aquela pontinha quente e aconchegante lá fundo no peito que o americano dizia chamar-se amor.

   Respiro fundo, arrepiado com a pausa no meu pensamento. Uma certa mágoa impele a resposta à pergunta que tinha formulado em segredo: nunca saberemos como seria. Nunca saberemos, porque isso não aconteceu e já é tarde demais para nós (via-o perfeita e revoltadamente no olhar do velho: era como se fossemos pequenas aberrações, mentes infantis barbaramente alteradas. E já demasiado danificadas para reparar.) Continua a não acontecer e eu sei - por mais que deseje o contrário - que nunca acontecerá. E a escolha não é nossa. Uns nascem do lado dos sonhos. Outros do lado dos pesadelos.

   E os pesadelos são muitos.

   Mas, pior do que pesadelos, é a realidade.

   Em vez de acordar com o consolo de uma mãe extremosa, desperto a arquejar, com um misto de sentimentos ainda a perseguirem-me insistentemente. Por entre as gotas de suor, as imagens do sonho estão prestes a repetirem-se à minha frente na vida real. Uma vez mais. Não consigo afastar o medo da criança que já não sou e que há muito aprendi a esquecer, mergulhando num vazio sem fundo. Sou incapaz de ignorar a mórbida sensação de culpa por saber que matei. Contudo, tirando os momentos em que esta me faz acordar sobressaltado, já quase não a sinto. Com o passar do tempo, essa culpa tornou-se assustadoramente ínfima... Insondável. E, sobre ela, vence o temível e violento impulso.

   Surtindo o mesmo efeito que qualquer uma das drogas que já nos deram aqui, a fúria sedenta pela luta e pelo sangue é ainda perigosamente alucinante. Arrepio-me... viciante.

   Sinto-a percorrer-me as veias quando desperto de mais um pequeno momento de reflexão inútil e de vulnerabilidade desnecessária. Arrependo-me por esse desvio revelador de fraqueza. Eu tenho de ser duro. Matar sem piedade. Foi isso que sempre me ensinaram, desde que nasci. É isso que farei.

   Quando me volto na direção de Samael, ouço um tiro soar seco no ar e atingir-lhe o abdómen. Mesmo antes de o ver cair, sei que já não terá salvação. Que acabei de o perder como sempre temi.

   Imaginando que nunca mais o verei, sinto-me explodir de pura e destruidora cólera. A raiva é mais louca do que nunca. A frieza do meu vazio canaliza a fúria para a mira da HK MP7. Não tenho de pensar em nada a não ser em como aquele soldado vai pagar, em como eles têm todos de morrer.

   Não interessa se também eu morrer mais um pouco. Já não há nada que me faça viver. Apenas o impiedoso vazio controla os meus movimentos.

   Então, pego na arma.

   Pego na arma e disparo.


(AVISO: Assim como o restante conteúdo do blog, este conto está protegido com direitos de autor)


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