No (des)conforto das histórias... #3

22/03/2019


Olá a todos!! :)

É dia de cortar com o habitual e trazer mais um pequeno conto... Uma história desta vez mais curta, mas não menos importante no que toca à temática em que assenta a reflexão.

Enfim, hoje, as palavra não são minhas. Mas da protagonista deste pequeno momento...



   Não há nada a fazer, concluo, em pensamento. As pessoas precisam mesmo de se sentirem por cima. Na verdade, parece que sentem uma desprezível necessidade de atingirem. De espezinharem para se acharem superiores. Como se o domínio selvático dos antepassados animalescos ainda possuísse uns vestígios perdidos a correrem no interior das nossas veias, transformado em malícia pelos requintes da razão humana.

   - ... todos sabemos que vai concordar, escusa de fingir indecisões... - remata D Adelina, a meio da votação, despertando-me dos meus pensamentos ao subir repentinamente o tom. A voz azeda completa a expressão bruta e dissimulada.

   Luísa baixa o humilde olhar azul para o chão, claramente envergonhada. A humilhação tinha funcionado na perfeição. E o pior é que era absolutamente desnecessária: todos sabem que a franzina Luísa, de 25 anos, cuida de crianças durante o dia. E que está a ser chantageada para votar a favor no projeto de obras da condómina mais odiada. Na verdade, ninguém se importa com o seu trabalho não declarado, quanto mais sabendo que esta é uma resposta temporária de uma mãe desesperada a um longo período de desemprego. Mas é claro que o mesmo não se aplica à corcunda Adelina, que tem quase tantas rugas quanto os secretos boatos que espalha pela vizinhança.

   Suspiro, controlando a irritação. Ainda decorrem uns quantos momentos em que a D Adelina lança um ar de superioridade a Luísa, que olha para os pés antes de ceder à pressão...

   - Sim... - balbucia. - Voto a favor.

   A tensão que se torna palpável na sala é quebrada pelo sorriso convencido da desprezível mulher que atravessa a reunião até à mesa improvisada do administrador do condomínio: - Pronto, parece que não há mais nada a dizer!

   Contorço-me para não reagir. Enquanto o homem regista os resultados da votação, algumas pessoas aproximam-se de Luísa ou lançam-lhe um olhar reconfortante.

   Já eu nunca tive jeito para esse tipo de coisas... O máximo que me sinto capaz de fazer é agarrar na velha e desfazê-la aos bocadinhos em frente de toda a gente. O que claramente não vai acontecer. Assim, mal a reunião é declarada fechada, saio para o frio da noite e aqueço-me com um travo no cigarro acabado de acender.

   Ao longe, um casal adolescente move-se indistintamente no meio de beijos ansiosos e desesperados, trazendo até mim a memória obscura do meu último relacionamento. Ainda me recordo das carícias secretas a meio da noite. Dos abraços mais fortes. Cada vez mais apertados, sufocantes... Dolorosos.

   As memórias começam a assumir um tom obscuro e azedo...

   Tudo terminado quando o abraço quase me deixava sem respiração. Um abraço largado demasiado tarde, terminado depois de demasiadas nódoas negras. Marcas que ainda sinto na pele, quando revivo tudo outra vez. Cicatrizes mais profundas na memória que não sou capaz de apagar.

   A revolta debate-se dentro de mim, aumentando de intensidade com o vórtice de momentos e flashes violentos.

   Engasgo-me com o cigarro. A minha tosse convulsiva ecoa, fria, na noite escura.

  A ácida certeza torna a assolar-me. Uma centelha vergonhosa de resignação a iluminá-la...

   Não, não há nada a fazer...


(AVISO: Assim como o restante conteúdo do blog, este conto está protegido com direitos de autor)


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